1965-1985
Contribuição da Sociedade Portuguesa de Medicina do Trabalho para o desenvolvimento da Saúde Ocupacional em Portugal
Alocução proferida na sessão inaugural do ano académico da Sociedade Portuguesa de Medicina do Trabalho, 1985 - 1986.
Texto publicado no "Jornal da Sociedade das Ciências Médicas de Lisboa", Tomo CL - Janeiro de 1986 - nº 1, p.40-42
Mário Humberto de Faria
Sócio Honorário e Presidente do Conselho de Direcção da Sociedade Portuguesa de Medicina do Trabalho (1985/87, 1989/91 e 1991/93), enquanto Secção da Sociedade das Ciências Médicas de Lisboa.
Professor Catedrático e Director do Curso de Especialização de Medicina do Trabalho (CEMT) da Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP) até 1999.
Contribuição da Sociedade Portuguesa de Medicina do Trabalho para o desenvolvimento da Saúde Ocupacional em Portugal
Alocução proferida na sessão inaugural do ano académico da Sociedade Portuguesa de Medicina do Trabalho, 1985 - 1986.
Texto publicado no "Jornal da Sociedade das Ciências Médicas de Lisboa", Tomo CL - Janeiro de 1986 - nº 1, p.40-42
Encontramo-nos hoje aqui reunidos para inaugurar mais um ano académico da Sociedade Portuguesa de Medicina do Trabalho, cabendo-me, na qualidade de presidente da sua Direcção recentemente eleita, a honrosa tarefa de proferir algumas palavras que formalmente assinalem a abertura das actividades desta secção da Sociedade das Ciências Médicas de Lisboa relativas a 1985 / 86.
Escolhi como tema da reflexão para este momento, aquele que designei por "Contribuição da Sociedade Portuguesa de Medicina do Trabalho para o desenvolvimento da Saúde Ocupacional em Portugal", e fi-lo não tanto com a intenção de trazer aqui uma retrospectiva ou balanço do papel, sem dúvida relevante, até hoje já desempenhado pela nossa Sociedade na implantação e no progresso da Medicina do Trabalho portuguesa, mas sobretudo com o propósito de sugerir algumas ideias gerais sobre o que na minha perspectiva deve ser, no momento presente e daqui para o futuro, o nosso contributo para a melhoria da saúde ocupacional do país.
Aos homens, e também às instituições, indispensável se torna que, de vez em quando, parem para reflectir. Reflectir sobre aquilo que são, aquilo que de bom e de mau já fizeram, aproveitando -- sem nenhum complexo pelos erros cometidos e sem qualquer visão narcisista dos êxitos alcançados -- as lições úteis que a História sempre pode fornecer com vista à construção de um presente e de um futuro melhores. E afigura-se-me, quanto ao caso concreto da Sociedade Portuguesa de Medicina do Trabalho, existirem motivos que tornam este momento particularmente adequado para uma paragem e uma reflexão desse tipo.
Em primeiro lugar, porque a Sociedade Portuguesa de Medicina do Trabalho vai completar, precisamente agora -- no final do corrente mês -- vinte anos de existência. É já a idade adulta, que pressupõe chegada a altura de ultrapassarmos o período de transição institucional a que expressamente se referiam os nossos sócios fundadores -- alguns deles aqui presentes, e a quem quero prestar uma sincera e muito justa homenagem -- no texto que dirigiram em 1965, ao Presidente da Sociedade das Ciências Médicas de Lisboa, propondo a "criação urgente" desta secção especializada.
Em segundo lugar, porque existe na Sociedade Portuguesa de Medicina do Trabalho, e desde há alguns anos a esta parte, uma indiscutível situação de crise. Crise de identidade, que tem de ser por nós serena e lucidamente assumida e analisada, e que se traduziu por um progressivo afastamento de certos princípios programáticos essenciais, materializado por uma vivência institucional feita muitas vezes à revelia da Sociedade das Ciências Médicas, dos seus estatutos e regulamento interno, e do próprio regulamento privativo da Secção a que pertencemos.
Finalmente, e este é sem dúvida o menos importante dos motivos justificativos da oportunidade desta reflexão interna que hoje me proponho apenas encetar, o início do ano académico de 1985 / 86 coincide praticamente com a entrada em funções de novos corpos sociais da Sociedade Portuguesa de Medicina do Trabalho, aqui eleitos em Assembleia - Geral de 26 de Julho passado.
Altura própria portanto, segundo creio, para repensarmos o nosso modo de viver, o regulamento original por que ainda nos orientamos, os nossos elos de ligação e obrigações para com a "Sociedade - mãe" a que pertencemos, e o papel que pretendemos representar no contexto social em que estamos inseridos, tudo isto tendo em vista -- pois é essa a principal finalidade e razão de ser da nossa existência -- a prestação de um contributo válido para o desenvolvimento e a valorização técnico-científica da Saúde Ocupacional do nosso país.
De facto, as sociedades científicas, como de resto a própria designação deixa perceber, desde sempre foram criadas, e pautaram a respectiva actuação, com o fim específico de promoverem o progresso dos ramos da ciência a que se dedicavam. A Sociedade das Ciências Médicas de Lisboa, cuja história deve constituir motivo de justificado orgulho para todos nós, é das agremiações médicas mais antigas do mundo, uma vez que a sua fundação remonta a 1822, mesmo ano do aparecimento da sua homóloga francesa -- a Academia de Medicina de Paris -- , dez anos antes da British Medical Association, e precedendo também de vinte e cinco anos a American Medical Association. É certo que a Sociedade das Ciências Médicas, na primeira e efémera fase da sua existência, durou apenas seis meses, não resistindo -- a par de todas as restantes instituições liberais daquela época -- ao movimento insurreccional restaurador do absolutismo que, ocorrido em Maio de 23, ficou conhecido na história portuguesa pela designação de Vila - Francada. Mas reapareceu, e então, felizmente, para ficar, em 1835.
Nos seus estatutos originais, de 1822, encontra-se desde logo inequivocamente definido que a "sociedade tem por fim concorrer para o progresso das ciências médicas", ideia que criou raízes e foi retomada, na sua pureza inicial, treze anos mais tarde, quando -- e cito o aviso publicado no "Diário do Governo" de 16 de Maio de 1935 -- "alguns dos antigos membros julgaram " o tempo presente o mais propício para instaurar de novo (a Sociedade das Ciências Médicas), reformar os seus Estatutos, e tratar de todos os meios que parecerem mais capazes de aperfeiçoar os diversos ramos de uma Sciencia tão vasta e difícil, como importante e necessária à Saúde dos Povos".
E é assim que nos estatutos actualmente em vigor, aprovados -- como sabem -- por despacho ministerial de 23 de Abril de 1955, a única finalidade expressa da Sociedade das Ciências Médicas de Lisboa continua a ser a de "contribuir para o aperfeiçoamento dos conhecimentos médicos em todos os ramos, nos seus aspectos teóricos e aplicados, de carácter individual, colectivo e social."
A partir de determinada altura, e utilizando as palavras de um antigo presidente desta casa, o Prof. Xavier Mourato, "a existência inevitável das especialidades arrastou como consequência fatal, tanto em Portugal como no estrangeiro, a agremiação dos especialistas em Sociedades especializadas". Daí que o Estatuto e o Regulamento interno da Sociedade passassem então a conter disposições tendentes a favorecer a criação de secções, sendo neste contexto que foi criada, em 30/11/1965, a Sociedade Portuguesa de Medicina de Medicina do Trabalho, cujo regulamento privativo -- aprovado pela Direcção da "Sociedade - mãe" em 7 de Novembro de 1966, e que não pode conter disposições contrárias aos estatutos e regulamentos da Sociedade das Ciências Médicas de Lisboa -- define como primeiro objectivo da Secção o de "promover o sentido de agremiação entre os seus associados e estimular o estudo da respectiva especialidade".
Penso, pois, não poderem existir quaisquer dúvidas quanto à natureza e aos fins próprios de uma Sociedade do tipo daquela a que pertencemos. E o que valerá a pena, agora, sublinhar, é a especificidade do papel social que cabe a agremiações científicas como a nossa na promoção e desenvolvimento dos conhecimentos técnico- científicos e na elevação do nível da prática profissional, relativamente à área do "saber médico" a que se dedicam. Essa especificidade -- que significa a incapacidade prática de outras instituições, diferentes pela sua natureza e pelos seus objectivos imediatos, desempenharem com a mesma eficácia idêntico papel -- advém da heterogeneidade, do pluralismo, no âmbito da formação e da experiência profissional, característico das Sociedades deste tipo.
Já Félix da Gama, que pode, creio que a justo título, ser considerado o precursor mais imediato da Sociedade das Ciências Médicas de Lisboa, se referia com grande clareza e enorme lucidez a essa especificidade do contributo de uma por ele então designada "Academia Privativa", na "promoção dos progressos da Medicina, e da Cirurgia em Portugal". Dizia Félix da Gama, num texto primeiro dedicado (em 1821) ao "Soberano Congresso Nacional" e publicado em opúsculo no ano seguinte, que não basta tomar as medidas necessárias para estabelecer um bom methodo de estudos em Medicina; convem igualmente promover o adiantamento desta sciencia, pois que o ensino a mostra tal qual ella he actualmente, mas para sollicitar os seus progressos he preciso mais alguma cousa.
E esse mais "alguma coisa" incluía, segundo ele, e em primeiro lugar, estabelecer uma correspondencia com os Medicos e Cirurgiões mais instruidos, sejão Nacionais ou Estrangeiros, e reunir tudo o que cada um delles tiver visto mais digno d'attenção, tanto nas Cidades e Villas (...)
Duas ideias-chave, perfeitamente actuais, para a boa compreensão do papel específico que cabe às Sociedades Científicas: que devem complementar a acção desenvolvida pelas instituições de ensino e de investigação, não as devendo substituir mas não podendo igualmente ser substituídas por elas; e isto -- segunda ideia -- porque dispõem de um manancial de riqueza que lhes é próprio, desde que se constituam num espaço vivo de intercâmbio das experiências profissionais, múltiplas e variadas, de que cada um dos seus membros é necessariamente portador.
Não é, assim, por acaso que a Sociedade das Ciências Médicas aparece caracterizada, no momento da sua formação, como "Instituição de Ensino Mútuo". Como não é igualmente por acaso que o regulamento original (e ainda em vigor) da Sociedade Portuguesa de Medicina do Trabalho refere, antes de mais e como seu primeiro objectivo, o tal "promover o sentido de agremiação entre os seus associados".
A Sociedade Portuguesa de Medicina do Trabalho conta actualmente com cerca de 250 sócios titulares, cujos elos de ligação e de interesse em relação à Saúde Ocupacional passam por situações e experiências profissionais bastantes diversificadas:
Médicos do trabalho de grandes empresas do sector público e privado, alguns dos quais vinculados à saúde ocupacional em regime de total profissionalização;
Médicos do trabalho de pequenas e médias empresas, muitos dos quais desempenhando actividades do âmbito da saúde ocupacional em regime de tempo parcial e como actividade profissional secundária;
Médicos dos serviços oficiais de saúde ocupacional, centrais e periféricos, pertencentes quer ao Ministério da Saúde, quer ao Ministério do Trabalho;
Profissionais ligados ao ensino e à investigação na área da saúde ocupacional, quer em instituições universitárias, quer na Escola Nacional de Saúde Pública.
É este filão de experiências, susceptíveis de mutuamente se potencializarem, que a nossa Sociedade possui pela sua natureza intrínseca, e que deve saber aproveitar e rentabilizar ao máximo. É essa matéria-prima que sem perda da identidade que nos é própria, teremos de utilizar para que -- através de uma efectiva valorização técnico-profissional de todos os membros da Sociedade Portuguesa de Medicina do Trabalho -- esta possa fornecer a contribuição válida e eficaz que lhe cabe na dignificação e no desenvolvimento da Saúde Ocupacional portuguesa.
Por que meios? Antes de mais e acima de tudo, aqueles que o Estatuto da "Sociedade - mãe" preconiza e que, na generalidade, foram adoptados e integrados no regulamento privativo da nossa Secção. Atrevo-me a recordar alguns:
Realização de reuniões científicas, conferências e cursos especializados, indo ao encontro das necessidades reais e concretas de formação e valorização profissional dos sócios e em que estes sejam participantes activos e não meros espectadores de circunstância.
Atribuição de prémios e eventual concessão de bolsas de estudo, que actuem como estímulo da produção de trabalhos de índole técnico-científica de boa qualidade por parte dos membros da nossa Sociedade.
Divulgação qualificada de textos sobre Saúde Ocupacional, sempre que possível da autoria dos próprios sócios, através de uma secção especializada do Jornal da Sociedade das Ciências Médicas de Lisboa, publicação iniciada em 1835 e para cujo indiscutível prestígio temos a estrita obrigação de contribuir activamente.
E não nos deixemos equivocar por jogos de palavras que possam servir de suporte, ou até de alibi, para o alheamento da Sociedade Portuguesa de Medicina do Trabalho das práticas e princípios característicos da Sociedade Médica que lhe serviu de berço e a que efectivamente pertence. É certo -- e todos o sabemos -- que os termos Medicina do Trabalho e Saúde Ocupacional já hoje não são tidos, ao contrário do que acontecia nos anos sessenta, como sinónimos. Ninguém duvida também do caracter pluridisciplinar das intervenções inerentes à Saúde Ocupacional. Mas não deixa de ser igualmente verdade que à Medicina do Trabalho correspondem um conteúdo e uma identidade próprios, e que a Sociedade das Ciências Médicas portuguesa desde sempre favoreceu, no seu seio, o intercâmbio de conhecimentos e experiências multidisciplinares.
Recorde-se a esse respeito:
que dos 21 "instituidores" da Sociedade saídos da reunião preparatória realizada em Junho de 1822, faziam parte médicos, cirurgiões e farmacêuticos, e que possuíam esta última especialidade um dos vice-presidentes e o tesoureiro da 1ª Direcção eleita cinco meses mais tarde;
que podem pertencer à Sociedade das Ciências Médicas, nas classes de agregados, honorários ou beneméritos, sócios não médicos, desde que "cultivem ciências afins à medicina ou que , de algum modo, interessem ao progresso das ciências médicas";
e, finalmente, que as secções da Sociedade -- e não vejo porque a nossa há-de constituir excepção -- podem acolher profissionais não médicos numa classe de sócios dele privativos, a de membros associados.
Regressemos pois confiada e tranquilamente às origens, sem receio de que isso possa significar um qualquer inevitável retrocesso. Pelo contrário, creio bem ser essa, no momento presente, a via mais curta e mais segura de entrarmos no futuro sabendo como e para onde queremos caminhar.